Contos
de Mundos Anexos, de Nuno Bastos
Editora:
Escrytos – Edição de autor
Preço:
5,99 €
Nos
anexos da mente ou do mundo real. É dai que surgem os doze contos que aparecem
em Contos de Mundos Anexos. É ai que encontramos o vizinho que pulava, o sofá
novo, um homem dentro de um elevador, uma bota com lama e outros
acontecimentos. Havia também o outro que se arrastava e uma sala num local. Ou
um comboio no seu percurso.
Excertos
dos contos incluídos
O
HOMEM PERPENDICULAR
“Havia
um homem que surgiu parado em pé diante de um edifício. Deixava os braços
caídos ao longo do corpo e todo ele ficava muito recto, como se quisesse imitar
a verticalidade da construção. Quiseram saber a razão de ele estar sempre tão
direito e a olhar para o edifício mas o homem não respondeu, como se nem
tivesse sequer ouvido a pergunta. Alguns cidadãos preocupados quiseram tirar o
homem dali e colocá-lo num sítio onde estorvasse menos a passagem mas não o
conseguiram fazer. O homem manteve-se tão recto como estava e nem levantá-lo do
chão conseguiram, mantendo-se no estado de absoluta perpendicularidade em
relação ao solo.”
O
VIZINHO
“Diariamente
era chamado por um vizinho. Ele batia à porta de minha casa, sempre com três
pancadas, eu abria e ele pedia-me para ir a casa dele. Era para lhe ver os
progressos da situação porque esse
vizinho tinha como tarefa pular ininterruptamente com o objectivo de, durante
um dos pulos, se imobilizar no ar, não tendo qualquer contacto com o chão. Ele
queria atingir um ponto de imobilidade que não desse origem a que continuasse
sempre a subir rumo ao espaço ou que continuasse sempre a descer rumo ao centro
da Terra.
Ele
tinha, tempos antes, dado início a essa tarefa, organizando uma sessão por dia
para a qual fui convidado para ser uma espécie de juiz.”
NO
COMBOIO
“Entrei
num comboio. Havia apenas um comboio na estação de partida, aquele que eu tinha
de apanhar. Perto, via-se o fiscal de embarque que pedia os bilhetes aos
passageiros antes de embarcarem. Entreguei-lho, ele analisou-o de alto a baixo
e da esquerda para a direita, olhou para mim e deu-me autorização para o
embarque, devolvendo-mo. Subi os dois degraus da carruagem e procurei o lugar
que me havia sido destinado que não era naquela mas sim numa carruagem mais
para diante. Havia já passageiros sentados mas muitos dos lugares estavam vagos
e havia até carruagens sem ninguém.
O
comboio iniciou a marcha pouco depois de me sentar no meu lugar ao lado da janela
e mal tínhamos saído da estação quando o fiscal de bordo se aproximou,
dizendo-me para o acompanhar até ao seu gabinete, na primeira carruagem.
Entrámos e pediu para me sentar na cadeira diante da sua secretária.
Informou-me que, desse momento em diante, eu seria colocado ao serviço de Sua
Excelência.”
OS
HOMENS
“Abri
uma janela e entrou um homem em minha casa. Era já o segundo nesse dia.
Consegui expulsar o primeiro após persegui-lo durante várias horas. E a este, o
segundo, iniciei-lhe a perseguição logo que atravessou a janela rumo ao
interior do meu lar. Corri atrás dele, tentando mudar de direcção tão
rapidamente quanto ele o fazia na sua corrida, mas foi em vão. Passaram-se
vários minutos, talvez uma hora, e nada consegui. Sentei-me, por fim, exausto
numa cadeira da sala. De seguida o homem parou, pois também ele devia estar
cansado após todo aquele esforço.”
O SOFÁ
“Eu
tinha um sofá novo em casa. Coloquei-o num lugar que lhe estava reservado havia
certo tempo. Era verde e muito confortável e, nos primeiros tempos, pedia
sempre aos meus convidados para nele se sentarem para lhe provarem o gosto. A
opinião foi unânime ao avaliar o extremo conforto dele, já quanto à cor houve
várias opiniões, havendo quase tantas preferências quanto as visitas.
Fiquei
surpreendido quando, num final de tarde, tempos depois, vi que tinha brotado
uma mão do seu interior, num dos extremos do sofá, perto do apoio dos braços.
Eu tinha acabado de chegar das compras e pousei os sacos no chão para averiguar
a situação e aproximei-me do sofá.”
O
HOMEM QUE SE SEGURAVA A UMA DAS MINHAS PERNAS
“Um
dia saí de casa e reparei que estava um homem agarrado a uma das minhas pernas.
A outra não tinha qualquer problema e movimentava-a normalmente mas, para
movimentar essa, tornou-se necessário fazer algum esforço devido à carga do
homem que a ela se segurava com ambas as mãos. Por causa deste problema, quando
me movimentava a passo, o homem arrastava-se deitado pelo chão sempre que era a
vez de avançar com essa perna.”
HAVIA
LAMA NUMA DAS MINHAS BOTAS
“Havia
lama numa das minhas botas e isso foi um grande mistério lá na aldeia. Muitos
homens acercaram-se de mim à entrada da povoação e colocaram-se em pé em torno
de mim. Rodeavam-me a toda a volta e perguntavam-me de onde tinha vindo aquela
lama. E quem me perguntava esticava o braço e tocava-me com a ponta da sua mão
e recolhia o braço e a mão depois de me ter feito a pergunta. Não sei quantos
homens eram à minha volta, mas várias dezenas eram certamente.”
A SALA
“É
costume naquela sala haver sempre uma pessoa sem lugar para se sentar. Diz-se
que é porque há uma cadeira a menos mas, segundo outros, é porque há uma pessoa
a mais. O certo é que, sejam ou não essas as razões, há sempre alguém que nunca
tem cadeira.
A
sala, em si, nada tem de incomum excepto, talvez, o facto de ter sido pensada e
construída para ser uma sala isolada do resto do corpo de um edifício. Ou
explicando melhor, a sala ocupa a totalidade de um pequeno edifício construído
propositadamente para a albergar. Esse edifício é quadrado, lembrando a metade
inferior de um cubo, tem uma porta num dos lados e outra no lado oposto. Nos
lados não ocupados pelas portas há uma janela em cada parede e, no interior da
sala, há cadeiras, várias cadeiras para que as pessoas se sentem quando
atravessam a sala.”
O
HOMEM QUE SE PROLONGOU NO TEMPO
“Um homem
ficou comprido no tempo. Ele avançava numa rua e a cabeça dele ficou como que
colada num instante mais ou menos no início dessa rua e o resto do corpo
continuou a caminhar. O topo do crânio ficou preso num qualquer ponto invisível
do espaço a determinada altura do chão. E, por ter ficado preso, a cabeça do
homem começou a esticar como se de um elástico se tratasse.”
O
PARASITÁRIO
“Entrei
em casa e mal tinha fechado a porta quando ouvi duas pancadas secas. Espreitei
pelo óculo da porta e vi dois homens lado a lado, exactamente iguais um ao
outro e imóveis. Afastei-me do óculo e, através da porta, fiz a pergunta do
“quem é?” mas nenhum respondeu. Passados uns segundos tornei a espreitar e
ainda estavam na mesma posição. Afastando-me do óculo, repeti a pergunta mas,
tal como antes, a resposta foi nula. Aguardei uns dois ou três minutos e depois
nova espreitadela e nova confirmação sobre a manutenção dos dois homens no
mesmo lugar. Afastei-me da porta e decidi ignorar o assunto, pondo em acção as
tarefas habituais existentes numa casa.
Tinham-se
passado umas horas quando me lembrei que tinha deixado gente à porta. Tornei a
espreitar pelo óculo e lá continuavam eles, não se foram embora. Permaneciam
ali, exactamente na mesma posição em que os deixei.”
NO ELEVADOR
“Estava
um homem em pé dentro do elevador de um edifício onde precisei de ir. Chamei o
elevador, abri-lhe a porta e vi-o. Era alto, com ar de cavalheiro e gestos
delicados. Estava quase encostado à parede do fundo da cabine do elevador, de
frente para a porta, e fazia pequenos e gentis gestos com as mãos, com os
braços e com os dedos. Ora levantava um pouco uma mão, ora a outra, depois baixava
ambas e subia um pouco um braço, depois o outro e baixava-os e passava depois
para os os dedos das mãos, levantando um de cada vez para os baixar em
simultâneo.”
AS
PORTAS
“Naquele
dia sorteavam as portas. Todos nós queríamos uma porta para colocar no buraco
aberto em cada uma das nossas casas e, sempre que nova fornada de portas saía
da fábrica, era grande a algazarra que se fazia. Criavam-se longuíssimas filas
à entrada da fábrica mas apenas os primeiros a chegar tinham a sorte de
conseguir uma porta. Os outros, desalentados, regressavam a casa, esperando por
nova data para a fornada seguinte para tudo, novamente, se repetir. O truque
era chegar à fábrica o mais depressa possível a partir do momento em que a data
da fornada era anunciada pois, tendo em atenção a quantidade limitada de portas
disponíveis em cada, apenas os primeiros a chegar conseguiriam obtê-la.”
Nuno
Bastos é performer, escritor, faz trabalho em madeira e já deu aulas de
pintura, de desenho, de História da arte e de teatro. Formou-se em artes
plásticas pelo Ar.Co. Contos de Mundos Anexos é o seu quarto livro e tem textos
publicados na revista online Selene – Culturas de Sintra, no Jornal de Sintra,
no blog colectivo Sintra Deambulada, na revista Abismo Humano e na colectânea
de contos A Boca da Noite. Por vezes, diz prosa e poesia.
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