UMA
CONVERSA ENTRE ADAM JOHNSON E DAVID EBERSHOFF*
DAVID
EBERSHOFF: Comecemos por Jun Do, o teu protagonista. Das mil e uma decisões
criativas que fizeste quando estavas a escrever este livro, ele foi
provavelmente a mais importante. Uma coisa é pensar na Coreia do Norte como
tema de um romance, mas claro que países e estruturas políticas nunca são
realmente temas de boa ficção — as pessoas são. Como escolheste Jun Do como teu guia — e nosso
— através deste mundo de pesadelo?
ADAM
JOHNSON: Há muita coisa escrita acerca dos aspetos políticos, militares e
económicos da RDPC, mas foi sempre a dimensão pessoal que me interessou.
Perguntava-me como é que as famílias se acomodavam sob uma tal repressão e como
é que as pessoas mantinham a sua identidade contra a maré da propaganda, e se
os amantes partilhavam, apesar dos perigos, os seus pensamentos íntimos. Assim,
desde o início, o meu objetivo neste livro era criar uma personagem singular
que fosse para mim totalmente humana. Deveria provavelmente dizer «captar» tanto
quanto «criar», pois utilizei muitíssima investigação para construir a
história. A primeira pessoa que entrevistei para o livro foi um órfão do Norte,
e o desespero e a tristeza da sua experiência impregnam a abertura do livro.
Todas as histórias de desertores me fascinaram, e quer trabalhassem em fábricas
de conservas ou em barcos de pesca, todos tinham em comum experiências de
serviço militar obrigatório, dos anos de fome, do desaparecimento de entes
queridos e da brutalidade do Estado. Num mundo em que a expressão é calculada e
a espontaneidade é perigosa, era especialmente importante encontrar momentos de
intimidade, humor e surpresa. Jun Do foi além desta investigação. Quando o
livro se inicia, Jun Do é um pau mandado, é uma personagem que faz o que lhe
dizem quando lhe dizem, por mais sombria que seja a tarefa, e não faz quaisquer
perguntas. Mas, ao ouvir as transmissões do estrangeiro e através de um
encontro casual com marinheiros americanos, a espontaneidade e a possibilidade entram
na vida de Jun Do. Desse ponto de vista, ele decide agir segundo as suas
necessidades e desejos, o que o vai levar a entrar em conflito com todos os
aspetos da sua sociedade.
DE:
Creio que a primeira vez que o coração se me partiu, neste livro — e partiu-se
várias vezes —, foi nas primeiras páginas quando o leitor percebe que Jun Do,
que tem orgulho de ser o único miúdo do orfanato que tem pai, é também um
órfão. Na vida real, a história de um órfão pode ser tão terrivelmente triste
que por vezes vemo-lo, a ele ou a ela, mais de uma forma piedosa do que de uma
forma complexa. E, no entanto, nestas páginas os órfãos atraem-nos, tanto
enquanto leitores como enquanto escritores. Qual pensas ser a razão disto?
AJ:
Na vida real, os nossos corações expandem-se. Nunca tinha escrito sobre um
órfão antes, e fui surpreendido pela resiliência e pela capacidade inquisitiva
de Jun Do. Na ficção, uma personagem como esta é como uma ardósia vazia, uma
ardósia que advoga ou defende, uma pessoa para quem até as noções básicas do
amor e do ter laços aparecem como grandes descobertas. E, claro, na Coreia do
Norte a relação primordial é com o Estado. As lealdades devem pertencer ao
regime em primeiro lugar e à família em segundo lugar, o que, de algum modo,
transforma toda a gente em órfão, e o regime de Kim no verdadeiro guardião dos
órfãos.
DE:
Sim, a ardósia vazia dos órfãos dá ao escritor uma espécie de liberdade, creio
eu. Quando vejo alguém interessante no metro — a senhora com a sua Bíblia nova,
ou o tipo das entregas a segurar numa dúzia de balões de poliéster —, a minha
mente vai em duas direções diferentes. De onde vêm? E para onde vão?
Frequentemente, a segunda questão é a de saber o que move um romance para
diante. Mas a primeira questão pode também ser uma fonte da profundidade de um
romance. Com uma personagem que é órfã, que nunca saberá a verdadeira história da
sua família, a primeira questão leva-nos, talvez, apenas até aí. A propósito,
vi as tuas fotografias do Metro de Pyongyang. Não há balões de poliéster e,
definitivamente, não há Bíblias. Quando foste à Coreia do Norte, já trabalhavas
no livro há uns quantos anos. Andavas a ler e a pensar nele há muito tempo. O
que mais te surpreendeu quando viste com os teus próprios olhos?
AJ:
Na verdade, a utilização de balões é uma tática vulgar de levar informações e
Bíblias em miniatura aos cidadãos do Norte. Os balões são grandes, normalmente
do tamanho de uma bola de praia, e são largados a sul da ZDC para voarem até ao
Norte com artigos preciosos agarrados, como meias de lã, coisas tão raras que
os Norte-Coreanos correm grandes riscos para localizarem os balões, e é ali que
encontram o material pró-religioso ou antirregime. Estava já a trabalhar em
Vida Roubada havia um par de anos quando, finalmente, descobri um caminho até
Pyongyang. Poucas pessoas têm hipótese de viajar até lá, e os meus guias —
gente brilhante, divertida e interessante — não sabiam o que fazer de mim.
Devido ao facto de estar profundamente envolvido no romance, sabia os locais
que queria visitar, e os meus guias ficaram entusiasmados quando pedi para ver
monumentos de grande orgulho nacional como o Cemitério dos Mártires Revolucionários
(que figura com relevo no livro) ou as estufas onde são cultivadas as flores nacionais,
kimjongilia e kimilsungia. Mas quando mostrei interesse em visitar um velho parque
de diversões, deparei com uma grande desconfiança. Não ajudou o facto de ter
perguntado porque não havia deficientes na capital, onde estavam situados os
pontos de emergência contra incêndios, e como é que o correio era entregue sem
caixas de correio. Quando observei que todas as mulheres em Pyongyang usam a
mesma tonalidade de batom, foi uma espécie de última gota. As coisas realmente
chocantes e assustadoras de que dei conta, em Pyongyang, essas pu-las
diretamente no livro: um camião basculante cheio de «voluntários» a caminho do campo,
uma família a trepar às árvores para roubar castanhas num parque público, os
apitos, Kalashnikov cromadas, e um guarda-noturno sentado durante toda a noite
a guardar as carpas nos lagos.
DE:
Falaste alguma vez com alguém exterior à visita orquestrada?
AJ:
É uma boa pergunta. Na verdade, é ilegal para um cidadão da RDPC interagir com
um estrangeiro. Todas as pessoas que conheci tinham sido especialmente
treinadas para tratar com visitantes americanos. Por isso, não havia espaço
para uma interação genuína. Ao caminhar pelas ruas da capital no meio de
multidões de habitantes de Pyongyang a caminho dos seus destinos, senti um
apelo enorme para falar com eles, ouvir as suas histórias, mas isso não era possível,
pelo que tinha de trazer as suas histórias à luz através da ficção.
DE:
Pergunto-me se vislumbraste, mesmo se através da janela de um carro, alguém a
passar por uma experiência que pudesse ser descrita como sendo de alegria. Não
a alegria relativa às realidades políticas, claro, mas a simples alegria de
passear com um amigo ou de parar para sentir a brisa.
AJ:
Oh, claro que sim. As pessoas ali são tão humanas quanto nós, movidas pelas
mesmas necessidades e motivações. Têm muitas regras para seguir, mas desde que
sejam atentos e cautelosos, podem viver uma vida relativamente normal. Por
exemplo, ao mesmo tempo que a maior parte dos cidadãos não corre o risco de
sequer olhar para um estrangeiro como eu, vi casais a passearem ao longo do Rio
Taedong e famílias a fazerem piqueniques na Colina Mansu. Os rapazinhos
brincavam com barcos nas fontes e os velhos pareciam entretidos com o jogo de
cartas nas praças. Vi jovens a lerem livros (aprovados pelo Estado) e o que
parecia ser um clube de jardinagem a cuidar das flores junto à estátua de
Chollima. Pyongyang é onde residem as elites do país, cujas vidas são
relativamente mais estáveis e agradáveis do que a dos seus homólogos da
província.
DE:
Como é que o livro mudou depois da viagem à Coreia do Norte?
AJ:
Uma vez que não me era permitido falar, a não ser através de um guia, com as
pessoas que conheci em Pyongyang — guias de museus, chefs, motoristas de
autocarro —, quis realmente dar vida a um cidadão de Pyongyang. Daí que tenha
criado a figura do interrogador, uma pessoa que nos pudesse mostrar os
edifícios de apartamentos, os caminhos subterrâneos e os mercados noturnos da
capital. Enfrentei, porém, muitos desafios para construir esse retrato. As
pessoas de Pyongyang tendem a não desertar e, por conseguinte, as suas
histórias não são conhecidas no mundo exterior, pelo que o modo como vivem é um
mistério ainda maior. E sabe-se muito pouco sobre a Polícia Secreta Norte-Coreana.
Assim, tive de inventar a maior parte desta personagem. Recorri a informações
do maior número de fontes possível e, ao mesmo tempo que muitos aspetos desta
personagem podem não assentar em factos, senti que, emocionalmente, era a parte
mais verdadeira do livro em termos de como a autocensura e a paranoia podem
corroer os laços de uma família, mesmo entre pai e filho, até tudo se
transformar em desconfiança e medo, até os próprios polos do amor terem sido
invertidos.
DE:
Como deverão os leitores distinguir o que é real e o que é inventado, no teu
livro? É um romance, mas é situado num lugar real.
AJ:
Se a literatura é uma ficção que nos fala de uma verdade mais profunda, sinto
que o meu livro é um retrato muito exato sobre como os princípios do
totalitarismo devoram as coisas que nos tornam humanos: liberdade, arte,
escolha, identidade, expressão, amor. E devido ao facto de poucas coisas acerca
da Coreia do Norte serem verificáveis (para além de imagens de satélite e de
testemunhos de desertores), isto parece ser um reino no qual o alcance
imaginativo da ficção literária é o nosso melhor instrumento para descobrir a
dimensão humana de uma sociedade tão fugidia. Mas eu sei o que estás a perguntar:
são realmente arrancadas tatuagens às pessoas na Coreia do Norte? Os
Norte-Coreanos raptam realmente cidadãos japoneses? Há uma lógica e uma
racionalidade em cada decisão artística que tomei no livro, mas basta dizer que
a maior parte dos aspetos chocantes do livro é baseada no mundo real: os
altifalantes, os gulags, a fome, os raptos. Muita da propaganda, especialmente
as partes mais divertidas, foi diretamente tirada do Rodong Sinmun de
Pyongyang, o jornal do Partido dos Trabalhadores. Por exemplo, logo no início
da minha investigação, deparei com a história de Charles Robert Jenkins, um
soldado dos EUA que, em 1965, bebeu dez cervejas e depois atravessou a ZDC e entrou
na Coreia do Norte, onde esteve detido durante trinta e nove anos. Os Norte-Coreanos,
depois de capturarem Jenkins, arrancaram-lhe a pele onde tinha as tatuagens dos
Marines, com uma faca e sem anestesia. Durante os primeiros sete anos de
confinamento, foi obrigado a memorizar e transcrever as obras de Kim Il Sung. A
seguir, foi enviado para a escola de línguas para ensinar inglês aos espiões
norte-coreanos, mas quando o seu sotaque da Carolina do Norte se revelou
constituir um problema, foi arrolado para desempenhar papéis de vilão americano
em filmes de propaganda. Em 1980, os Norte-Coreanos arranjaram-lhe um casamento
com Hitomi Soga, uma enfermeira que fora raptada no Japão. O leitor verá que
todos estes elementos encontraram — de uma forma ou de outra — um lugar no
romance. Sabemos que os Norte-Coreanos escavaram túneis de incursão sob a ZDC,
que raptaram grandes quantidades de cidadãos estrangeiros e que utilizam barcos
de pesca para transportar dinheiro falso, drogas ilegais e contrabandear
munições militares. O que é ficção é que uma só pessoa pudesse ser investida
com todas estas capacidades, como acontece com a minha personagem Jun Do Mas,
neste caso, valorizei um retrato mais alargado da sociedade norte-coreana em
relação à plausibilidade de que uma só pessoa pudesse ter um tal leque de
posições. Senti que, na verdade, tinha de suavizar a verdadeira escuridão da
Coreia do Norte, como no caso dos gulags kwan li so, sobre os quais os
relatórios eram tão pungentes — abortos forçados, amputações, execuções coletivas
— que inventei a colheita de sangue como um substituto menos selvagem, que fosse
simples e visceral, pela forma como o regime de Kim rouba todas as gotas de
vida aos cidadãos que sentenciou a uma eternidade de trabalho escravo.
DE:
Muitas pessoas teceram comentários sobre o teu absoluto domínio do tema, sobre
a quantidade de coisas que sabes sobre o país e a vida dos seus cidadãos. Para
mim, tão importante como isso é o teu domínio do género. O romance é uma
história de crescimento, uma história de espionagem, uma história de amor.
Existe nele uma história de aventura no mar, uma história de rapto, uma
história de redenção. Moves-te através de uma quantidade de registos, incluindo
o trágico, o irónico, o satírico, o terno e o simplesmente aterrador. Como
conseguiste lidar com tantos tipos de escrita? Que desafios estiveram presentes
ao escrever um romance que se expande por tantas zonas?
AJ:
Suponho que poderia dizer que, esteticamente, sinto este livro como muito
natural e normal e muito colado à vida. As nossas vidas não são uma colisão
entre o cómico e o incerto, entre o aterrador e o mundano? O que me soa falso a
mim é quando os romances escovam o seu tema de tal modo que tudo pode ser
articulado no mesmo registo e com a mesma modulação. Mas, em termos de material
recolhido, senti que tinha a obrigação de organizar o livro do modo como o fiz.
Li as narrativas de muitos desertores, todos eles com histórias traumáticas para
contar. Para um escritor de ficção, o modo como essas histórias são contadas é
tão importante como os seus conteúdos. As narrativas traumáticas são marcadas
pela fragmentação, por quebras na cronologia, pelas alterações na perspetiva,
pelas mudanças de registo, e por momentos de ausência. Precisava de captar
todos esses elementos se queria dar vazão às experiências destas personagens de
uma forma autêntica. E creio que a Coreia do Norte é uma narrativa traumática a
uma escala nacional. O verdadeiro erro teria sido obrigar esta história a conformar-se
ao horizonte de expectativas do leitor ocidental — um género de algo
agradavelmente organizado, com princípio, meio e fim. A realidade é que só
conheceremos a verdadeira forma de escrever um romance localizado na Coreia do
Norte quando os romancistas nortecoreanos forem livres de contar as suas
próprias histórias. Espero que esse dia não demore a chegar.
David
Ebershoff é editor na Random House e foi o responsável pela edição de Vida
Roubada. O seu romance mais recente é The 19th Wife. Adam Johnson ensina
escrita criativa na Universidade de Stanford. A sua ficção tem aparecido nas
revistas Esquire, The Paris Review, Harper’s, Tin House, Granta, e Playboy, bem
como em The Best American Short Stories. A sua obra inclui Emporium, uma colectânea
de contos, e o romance Parasites Like Us. Vive em São Francisco.
Mais
informações em WWW.SAIDADEEMERGENCIA.COM
Esta entrevista foi da responsabilidade da editora Saída de Emergência.
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