24/01/2014

[SDE]Á conversa com...Adam Johnson


UMA CONVERSA ENTRE ADAM JOHNSON E DAVID EBERSHOFF*

DAVID EBERSHOFF: Comecemos por Jun Do, o teu protagonista. Das mil e uma decisões criativas que fizeste quando estavas a escrever este livro, ele foi provavelmente a mais importante. Uma coisa é pensar na Coreia do Norte como tema de um romance, mas claro que países e estruturas políticas nunca são realmente temas de boa ficção — as pessoas são.  Como escolheste Jun Do como teu guia — e nosso — através deste mundo de pesadelo?
ADAM JOHNSON: Há muita coisa escrita acerca dos aspetos políticos, militares e económicos da RDPC, mas foi sempre a dimensão pessoal que me interessou. Perguntava-me como é que as famílias se acomodavam sob uma tal repressão e como é que as pessoas mantinham a sua identidade contra a maré da propaganda, e se os amantes partilhavam, apesar dos perigos, os seus pensamentos íntimos. Assim, desde o início, o meu objetivo neste livro era criar uma personagem singular que fosse para mim totalmente humana. Deveria provavelmente dizer «captar» tanto quanto «criar», pois utilizei muitíssima investigação para construir a história. A primeira pessoa que entrevistei para o livro foi um órfão do Norte, e o desespero e a tristeza da sua experiência impregnam a abertura do livro. Todas as histórias de desertores me fascinaram, e quer trabalhassem em fábricas de conservas ou em barcos de pesca, todos tinham em comum experiências de serviço militar obrigatório, dos anos de fome, do desaparecimento de entes queridos e da brutalidade do Estado. Num mundo em que a expressão é calculada e a espontaneidade é perigosa, era especialmente importante encontrar momentos de intimidade, humor e surpresa. Jun Do foi além desta investigação. Quando o livro se inicia, Jun Do é um pau mandado, é uma personagem que faz o que lhe dizem quando lhe dizem, por mais sombria que seja a tarefa, e não faz quaisquer perguntas. Mas, ao ouvir as transmissões do estrangeiro e através de um encontro casual com marinheiros americanos, a espontaneidade e a possibilidade entram na vida de Jun Do. Desse ponto de vista, ele decide agir segundo as suas necessidades e desejos, o que o vai levar a entrar em conflito com todos os aspetos da sua sociedade.

DE: Creio que a primeira vez que o coração se me partiu, neste livro — e partiu-se várias vezes —, foi nas primeiras páginas quando o leitor percebe que Jun Do, que tem orgulho de ser o único miúdo do orfanato que tem pai, é também um órfão. Na vida real, a história de um órfão pode ser tão terrivelmente triste que por vezes vemo-lo, a ele ou a ela, mais de uma forma piedosa do que de uma forma complexa. E, no entanto, nestas páginas os órfãos atraem-nos, tanto enquanto leitores como enquanto escritores. Qual pensas ser a razão disto?
AJ: Na vida real, os nossos corações expandem-se. Nunca tinha escrito sobre um órfão antes, e fui surpreendido pela resiliência e pela capacidade inquisitiva de Jun Do. Na ficção, uma personagem como esta é como uma ardósia vazia, uma ardósia que advoga ou defende, uma pessoa para quem até as noções básicas do amor e do ter laços aparecem como grandes descobertas. E, claro, na Coreia do Norte a relação primordial é com o Estado. As lealdades devem pertencer ao regime em primeiro lugar e à família em segundo lugar, o que, de algum modo, transforma toda a gente em órfão, e o regime de Kim no verdadeiro guardião dos órfãos.

DE: Sim, a ardósia vazia dos órfãos dá ao escritor uma espécie de liberdade, creio eu. Quando vejo alguém interessante no metro — a senhora com a sua Bíblia nova, ou o tipo das entregas a segurar numa dúzia de balões de poliéster —, a minha mente vai em duas direções diferentes. De onde vêm? E para onde vão? Frequentemente, a segunda questão é a de saber o que move um romance para diante. Mas a primeira questão pode também ser uma fonte da profundidade de um romance. Com uma personagem que é órfã, que nunca saberá a verdadeira história da sua família, a primeira questão leva-nos, talvez, apenas até aí. A propósito, vi as tuas fotografias do Metro de Pyongyang. Não há balões de poliéster e, definitivamente, não há Bíblias. Quando foste à Coreia do Norte, já trabalhavas no livro há uns quantos anos. Andavas a ler e a pensar nele há muito tempo. O que mais te surpreendeu quando viste com os teus próprios olhos?
AJ: Na verdade, a utilização de balões é uma tática vulgar de levar informações e Bíblias em miniatura aos cidadãos do Norte. Os balões são grandes, normalmente do tamanho de uma bola de praia, e são largados a sul da ZDC para voarem até ao Norte com artigos preciosos agarrados, como meias de lã, coisas tão raras que os Norte-Coreanos correm grandes riscos para localizarem os balões, e é ali que encontram o material pró-religioso ou antirregime. Estava já a trabalhar em Vida Roubada havia um par de anos quando, finalmente, descobri um caminho até Pyongyang. Poucas pessoas têm hipótese de viajar até lá, e os meus guias — gente brilhante, divertida e interessante — não sabiam o que fazer de mim. Devido ao facto de estar profundamente envolvido no romance, sabia os locais que queria visitar, e os meus guias ficaram entusiasmados quando pedi para ver monumentos de grande orgulho nacional como o Cemitério dos Mártires Revolucionários (que figura com relevo no livro) ou as estufas onde são cultivadas as flores nacionais, kimjongilia e kimilsungia. Mas quando mostrei interesse em visitar um velho parque de diversões, deparei com uma grande desconfiança. Não ajudou o facto de ter perguntado porque não havia deficientes na capital, onde estavam situados os pontos de emergência contra incêndios, e como é que o correio era entregue sem caixas de correio. Quando observei que todas as mulheres em Pyongyang usam a mesma tonalidade de batom, foi uma espécie de última gota. As coisas realmente chocantes e assustadoras de que dei conta, em Pyongyang, essas pu-las diretamente no livro: um camião basculante cheio de «voluntários» a caminho do campo, uma família a trepar às árvores para roubar castanhas num parque público, os apitos, Kalashnikov cromadas, e um guarda-noturno sentado durante toda a noite a guardar as carpas nos lagos.

DE: Falaste alguma vez com alguém exterior à visita orquestrada?
AJ: É uma boa pergunta. Na verdade, é ilegal para um cidadão da RDPC interagir com um estrangeiro. Todas as pessoas que conheci tinham sido especialmente treinadas para tratar com visitantes americanos. Por isso, não havia espaço para uma interação genuína. Ao caminhar pelas ruas da capital no meio de multidões de habitantes de Pyongyang a caminho dos seus destinos, senti um apelo enorme para falar com eles, ouvir as suas histórias, mas isso não era possível, pelo que tinha de trazer as suas histórias à luz através da ficção.

DE: Pergunto-me se vislumbraste, mesmo se através da janela de um carro, alguém a passar por uma experiência que pudesse ser descrita como sendo de alegria. Não a alegria relativa às realidades políticas, claro, mas a simples alegria de passear com um amigo ou de parar para sentir a brisa.
AJ: Oh, claro que sim. As pessoas ali são tão humanas quanto nós, movidas pelas mesmas necessidades e motivações. Têm muitas regras para seguir, mas desde que sejam atentos e cautelosos, podem viver uma vida relativamente normal. Por exemplo, ao mesmo tempo que a maior parte dos cidadãos não corre o risco de sequer olhar para um estrangeiro como eu, vi casais a passearem ao longo do Rio Taedong e famílias a fazerem piqueniques na Colina Mansu. Os rapazinhos brincavam com barcos nas fontes e os velhos pareciam entretidos com o jogo de cartas nas praças. Vi jovens a lerem livros (aprovados pelo Estado) e o que parecia ser um clube de jardinagem a cuidar das flores junto à estátua de Chollima. Pyongyang é onde residem as elites do país, cujas vidas são relativamente mais estáveis e agradáveis do que a dos seus homólogos da província.

DE: Como é que o livro mudou depois da viagem à Coreia do Norte?
AJ: Uma vez que não me era permitido falar, a não ser através de um guia, com as pessoas que conheci em Pyongyang — guias de museus, chefs, motoristas de autocarro —, quis realmente dar vida a um cidadão de Pyongyang. Daí que tenha criado a figura do interrogador, uma pessoa que nos pudesse mostrar os edifícios de apartamentos, os caminhos subterrâneos e os mercados noturnos da capital. Enfrentei, porém, muitos desafios para construir esse retrato. As pessoas de Pyongyang tendem a não desertar e, por conseguinte, as suas histórias não são conhecidas no mundo exterior, pelo que o modo como vivem é um mistério ainda maior. E sabe-se muito pouco sobre a Polícia Secreta Norte-Coreana. Assim, tive de inventar a maior parte desta personagem. Recorri a informações do maior número de fontes possível e, ao mesmo tempo que muitos aspetos desta personagem podem não assentar em factos, senti que, emocionalmente, era a parte mais verdadeira do livro em termos de como a autocensura e a paranoia podem corroer os laços de uma família, mesmo entre pai e filho, até tudo se transformar em desconfiança e medo, até os próprios polos do amor terem sido invertidos.

DE: Como deverão os leitores distinguir o que é real e o que é inventado, no teu livro? É um romance, mas é situado num lugar real.
AJ: Se a literatura é uma ficção que nos fala de uma verdade mais profunda, sinto que o meu livro é um retrato muito exato sobre como os princípios do totalitarismo devoram as coisas que nos tornam humanos: liberdade, arte, escolha, identidade, expressão, amor. E devido ao facto de poucas coisas acerca da Coreia do Norte serem verificáveis (para além de imagens de satélite e de testemunhos de desertores), isto parece ser um reino no qual o alcance imaginativo da ficção literária é o nosso melhor instrumento para descobrir a dimensão humana de uma sociedade tão fugidia. Mas eu sei o que estás a perguntar: são realmente arrancadas tatuagens às pessoas na Coreia do Norte? Os Norte-Coreanos raptam realmente cidadãos japoneses? Há uma lógica e uma racionalidade em cada decisão artística que tomei no livro, mas basta dizer que a maior parte dos aspetos chocantes do livro é baseada no mundo real: os altifalantes, os gulags, a fome, os raptos. Muita da propaganda, especialmente as partes mais divertidas, foi diretamente tirada do Rodong Sinmun de Pyongyang, o jornal do Partido dos Trabalhadores. Por exemplo, logo no início da minha investigação, deparei com a história de Charles Robert Jenkins, um soldado dos EUA que, em 1965, bebeu dez cervejas e depois atravessou a ZDC e entrou na Coreia do Norte, onde esteve detido durante trinta e nove anos. Os Norte-Coreanos, depois de capturarem Jenkins, arrancaram-lhe a pele onde tinha as tatuagens dos Marines, com uma faca e sem anestesia. Durante os primeiros sete anos de confinamento, foi obrigado a memorizar e transcrever as obras de Kim Il Sung. A seguir, foi enviado para a escola de línguas para ensinar inglês aos espiões norte-coreanos, mas quando o seu sotaque da Carolina do Norte se revelou constituir um problema, foi arrolado para desempenhar papéis de vilão americano em filmes de propaganda. Em 1980, os Norte-Coreanos arranjaram-lhe um casamento com Hitomi Soga, uma enfermeira que fora raptada no Japão. O leitor verá que todos estes elementos encontraram — de uma forma ou de outra — um lugar no romance. Sabemos que os Norte-Coreanos escavaram túneis de incursão sob a ZDC, que raptaram grandes quantidades de cidadãos estrangeiros e que utilizam barcos de pesca para transportar dinheiro falso, drogas ilegais e contrabandear munições militares. O que é ficção é que uma só pessoa pudesse ser investida com todas estas capacidades, como acontece com a minha personagem Jun Do Mas, neste caso, valorizei um retrato mais alargado da sociedade norte-coreana em relação à plausibilidade de que uma só pessoa pudesse ter um tal leque de posições. Senti que, na verdade, tinha de suavizar a verdadeira escuridão da Coreia do Norte, como no caso dos gulags kwan li so, sobre os quais os relatórios eram tão pungentes — abortos forçados, amputações, execuções coletivas — que inventei a colheita de sangue como um substituto menos selvagem, que fosse simples e visceral, pela forma como o regime de Kim rouba todas as gotas de vida aos cidadãos que sentenciou a uma eternidade de trabalho escravo.

DE: Muitas pessoas teceram comentários sobre o teu absoluto domínio do tema, sobre a quantidade de coisas que sabes sobre o país e a vida dos seus cidadãos. Para mim, tão importante como isso é o teu domínio do género. O romance é uma história de crescimento, uma história de espionagem, uma história de amor. Existe nele uma história de aventura no mar, uma história de rapto, uma história de redenção. Moves-te através de uma quantidade de registos, incluindo o trágico, o irónico, o satírico, o terno e o simplesmente aterrador. Como conseguiste lidar com tantos tipos de escrita? Que desafios estiveram presentes ao escrever um romance que se expande por tantas zonas?
AJ: Suponho que poderia dizer que, esteticamente, sinto este livro como muito natural e normal e muito colado à vida. As nossas vidas não são uma colisão entre o cómico e o incerto, entre o aterrador e o mundano? O que me soa falso a mim é quando os romances escovam o seu tema de tal modo que tudo pode ser articulado no mesmo registo e com a mesma modulação. Mas, em termos de material recolhido, senti que tinha a obrigação de organizar o livro do modo como o fiz. Li as narrativas de muitos desertores, todos eles com histórias traumáticas para contar. Para um escritor de ficção, o modo como essas histórias são contadas é tão importante como os seus conteúdos. As narrativas traumáticas são marcadas pela fragmentação, por quebras na cronologia, pelas alterações na perspetiva, pelas mudanças de registo, e por momentos de ausência. Precisava de captar todos esses elementos se queria dar vazão às experiências destas personagens de uma forma autêntica. E creio que a Coreia do Norte é uma narrativa traumática a uma escala nacional. O verdadeiro erro teria sido obrigar esta história a conformar-se ao horizonte de expectativas do leitor ocidental — um género de algo agradavelmente organizado, com princípio, meio e fim. A realidade é que só conheceremos a verdadeira forma de escrever um romance localizado na Coreia do Norte quando os romancistas nortecoreanos forem livres de contar as suas próprias histórias. Espero que esse dia não demore a chegar.

David Ebershoff é editor na Random House e foi o responsável pela edição de Vida Roubada. O seu romance mais recente é The 19th Wife. Adam Johnson ensina escrita criativa na Universidade de Stanford. A sua ficção tem aparecido nas revistas Esquire, The Paris Review, Harper’s, Tin House, Granta, e Playboy, bem como em The Best American Short Stories. A sua obra inclui Emporium, uma colectânea de contos, e o romance Parasites Like Us. Vive em São Francisco.

Mais informações em WWW.SAIDADEEMERGENCIA.COM
Esta entrevista foi da responsabilidade da editora Saída de Emergência.

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